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A construção deste trabalho parte de uma inquietação que me acompanha há muito: conhecer a história do lugar onde cresci. Daquilo que já estava estabelecido no imaginário popular sobre o processo de ocupação e povoamento da cidade, foi o que também me apresentaram: a construção da Estrada de Ferro, que hoje divide o vale que configura a topografia da cidade, foi a grande responsável por consolidar essa pequena porção territorial de pouco mais de dez mil habitantes, chamada Aramari. Nada mais. 

 

Durante toda a infância minha curiosidade foi fomentada pelo contínuo arruinamento das antigas Oficinas de trens perto de casa. A imaginação fértil, por algum tempo, tentou suprir a ausência de registros históricos elucidativos, até que a trajetória acadêmica despertou em mim a responsabilidade de buscar atender àquela criança imaginativa que começa a obter respostas.

Se para Milton Santos (2006) o lugar é, à sua maneira, o mundo, e para Michel de Certeau (1998) ele é a ordem segundo a qual se distribuem elementos nas relações de coexistência, parto desses dois pensadores para entender a dimensão do espaço-território da cidade de Aramari, através da feitura do caminho de retorno até as suas histórias, estejam elas registradas em arquivos ou em memórias. Intenciono, a partir deste trabalho, redescobrir o “lugar praticado”, elaborado pelos agentes sociais (indígenas, escravizados, boiadeiros, missionários, colonos, militares, engenheiros, maquinistas, quitandeiros, roceiros, vagabundos etc) que tencionaram as fronteiras de coexistência entre o “eu” civilizado e o “outro” bárbaro, que construíram estradas e deixaram ruínas e que, para além disso, formaram um povo.

Entendo, portanto, através deste mesmo caminho de retorno, com seus registros, relatos e crônicas, ser possível estabelecer novas rotas e recriar outras possibilidades de mundo, ancoradas em configurações imaginativas diferentes daquelas definidas pelas explorações e conquistas europeias ou pelo progresso desenvolvimentista (MCKITTRICK, 2006), inscritas ao longo de três séculos de história neste espaço geográfico e do povo que o ocupa, desde que essas terras pindorâmicas, de povoamento étnico kiriri, foram intercruzadas pela Estrada das Boiadas e mais tarde pela Estrada de Ferro Bahia and San Francisco Railway.

Dessa maneira, tomo como mote a cartografia de transformação histórica da região onde hoje se localizam geograficamente a cidade de Aramari e o seu distrito, o território quilombola de Olhos D’Água – situados a pouco mais de 110 Km da cidade do Salvador –, levando em consideração a importância do papel cultural e histórico que estes dois lugares, implicados em um mesmo território, ocupam na construção da identidade afro-indígena regional do “sertão de dentro baiano”.

Neste exercício de revisitar as relações estabelecidas que constituem este espaço e reimaginar esse pedaço de Sertão-Mundo - entrelaçado com um sentido diferente de lugar -, as proposições descritas a seguir, que compõem este Trabalho Final de Graduação em Arquitetura e Urbanismo, se caracterizam, antes de qualquer intitulamento, enquanto reivindicação deste lugar não somente pela “propriedade do material e reintegração de posse [indígena e] negra, mas sim por uma gramática de libertação, através da qual geografias humanas éticas podem ser reconhecidas e expressas”. (Glissant apud. McKittrick, 2006, pp. 24)

Nesse sentido,  cabe dizer que a construção deste Trabalho Final de Graduação, materializado neste dossiê, integra um projeto de Ensaio Multimídia de mesmo título, “Aramari-Sertão-Mundo”, que está estruturado a partir de seis eixos propositivos que se complementam e se atravessam: (1) A construção deste dossiê aqui apresentado, como já dito; (2) A elaboração de um repositório digital da pesquisa; (3) A produção de um registro audiovisual; (4) O desenvolvimento de um Plano de Diretrizes para o Sítio Histórico Ferroviário de Aramari; (5) A realização de uma exposição virtual; (6) O desenvolvimento de um website que reunirá todas as ações;

O primeiro eixo propositivo está vinculado a construção deste dossiê, intitulado "Aramari-Sertão-Mundo: registros e memórias do processo de ocupação e povoamento ", que se organiza a partir de uma pesquisa, investigação e reflexão sobre as camadas históricas que compõem a cidade de Aramari e seu distrito - Quilombo Olhos D'água. O dossiê explora, de forma breve, desde os primeiros registros coloniais de ocupação do território até questões relativas aos processos sociais, espaciais e culturais que, em suas medidas, interferiram e demarcaram a construção desse lugar inserido no portal do sertão baiano. A dimensão histórica e cronológica deste material é entendida como ponto de partida para as proposições que o seguem, construindo ações que retomam e reivindicam a importância deste território e do povo que o habita. 

    

A segunda proposta, por sua vez, consiste na criação de um repositório digital para reunir todo material levantado durante a pesquisa desenvolvida ao longo da construção deste trabalho - jornais, arquivos fotográficos, referências bibliográficas, registros musicais etc. Cabe apontar que essa ação acontece no sentido de demarcar também as ausências e presenças do território de Aramari em arquivos e registros históricos, refletindo sobre os movimentos de visibilidade e apagamento que atuam sobre o mesmo. Portanto, pretende-se que o acervo das referências mobilizadas ao longo do projeto seja alimentado continuamente e esteja disponível à consulta pública.

A terceira proposta se refere a produção do registro audiovisual intitulado “Aramari-Sertão-Mundo”, aprovado no edital PibexA Tessituras 2021 (ANEXO 01), cujo roteiro explora a dimensão do lugar a partir de suas narrativas: de seu topônimo, do processo de “fricção interétnica”, da relação entre gerações familiares e o Complexo Ferroviário, das festividades, das mitologias, das manifestações religiosas e, especialmente, da noção de pertencimento de seus moradores. Pretende-se então, a partir do desenvolvimento colaborativo junto aos sujeitos personagens da narrativa relatada, elaborar uma documentação audiovisual de caráter experimental dos registros-memórias corpográficos acerca das relações históricas de habitabilidade e relação com o território.

 

A quarta proposta, que assume um caráter reivindicativo, corresponde ao plano de diretrizes para o Sítio que abriga as ruínas de edificações históricas na cidade de Aramari, que outrora formavam o Segundo Maior Complexo de Oficinas Ferroviárias da América Latina. O plano de diretrizes sugere, portanto, a retomada desse espaço a partir de alternativas de requalificação, proteção e reuso dessas edificações em atual processo de arruinamento, além de iniciativas de fomento ao reconhecimento desse Sítio Histórico Ferroviário como parte integrante do patrimônio baiano, referente aos bens móveis e imóveis de valor artístico, histórico e cultural, oriundos da extinta Rede Ferroviária Federal SA (RFFSA).

A quinta proposta é referente ao projeto para realização de uma exposição virtual, cujo proposta, idealizada no decorrer do desenvolvimento do Trabalho Final de Graduação, foi selecionado no edital “Cultura na Palma da Mão” financiado pela SECULT/BA (ANEXO 02), que reunirá intervenções artísticas de natureza gráfica e multimídia elaboradas e produzidas  a partir de oficinas colaborativas com estudantes de Ensino Médio do Colégio Estadual Antônio Balbino, sobre o território de Aramari/Olhos D'água. Propõe-se que a exposição possa ser contemplada pelo público de forma remota, através de website – em proposta que se manifesta através das chaves de reimaginar, recriar e repovoar esse espaço, numa perspectiva de “imagear” outros futuros possíveis/passíveis de existência para este território.

Por fim, pretende-se que as cinco propostas acima descritas estejam reunidas no website “Aramari-Sertão-Mundo”, construído com a finalidade de aglutinar essas ações e torná-las acessíveis a um público amplo. Espera-se que a construção do website possa contribuir enquanto instrumento para a salvaguarda da história e memória do lugar e do seu povo, em resistência ao processo sistemático de epistemicídio ao qual foram submetidos ao longo de séculos. Logo, espera-se que este trabalho contribua para a difusão do conhecimento acerca da história, cultura e memória afro-indígena regional baiana. Tornando-se cada vez mais oportuno e necessário oferecer à sociedade a possibilidade de acessar conhecimentos relativos a esses territórios, mobilizando registros de sua história, cultura e memória como contrapartida às tentativas contínuas de apagamento.

Para além disso, cabe apontar que o projeto não se finda nele mesmo e nem tem pretensão de se esgotar. O que se pretende a partir de então, como já foi dito, é iniciar a reconstituição de um caminho de retorno, prospectando o futuro. O trabalho, nesse sentido, assume também o papel de convidar quem o visita a dar prosseguimento a esse caminho de reconstituição, direcionando seu olhar ao futuro, para que, a partir da maneira que se sinta afetada pelo projeto, ao revisitar esses lugares do passado desde o mundo atual, sinta-se também inspirada a encontrar novos significados para “imagear” outras possibilidades de recriar esses territórios e suas existências.

A partir do foi apresentado sobre as propostas e as dimensões que elas pretendem alcançar, se faz necessário, no entanto, salientar que este projeto é especialmente feito e dedicado aos moradores da cidade de Aramari e distrito de Olhos D’Água, já que muitos foram os caminhos e sujeitos explorados nessas terras, e será sobre eles grande parte deste trabalho, é ao povo e ao território que busco atender aqui.

À urgência daqueles que desejam saber sobre as possibilidades de trilhar caminhos vindouros a partir dos passos inscritos em rotas estabelecidas anteriormente nesse lugar: Devolução!

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